quarta-feira, janeiro 05, 2011

Projeto Cigarras

PROJETO CIGARRAS

Resolveram que iam sair para cantar. Os dois sonhavam com isso. Em serem cantores. E é verdade que eles cantavam bem. Mas não seguiram carreira.

Ele fez contabilidade e ela psicologia. E o gogó ficou pra depois. Ficou pra ser usado no chuveiro. Ou no trânsito. Ele adorava cantar dirigindo, até coreografias executava. Ela preferia o chuveiro, achava que o local deixava sua voz ainda mais interessante. E assim seguiram até o dia que ele teve a idéia.

“Um karaoque”, ele disse. Ela titubeou : “só nós dois?” “Aham”. E decidiram que ele escolheria duas músicas pra ela cantar e vice versa. Uma nacional e a outra estrangeira. Teriam que escolher a canção e avisar o outro três dias antes, para que pudessem ensaiar afiar, treinar e tudo mais que envolve essas coisas artísticas.

Combinaram tudo por email. Indicaram as melodias, ela achou uma das letras muito complicada. “Esse inglês é demais pra mim....” Ele acrescentou que então queria mudar uma das músicas dele também, porque achava que não combinava com seu timbre. Tudo bem. Sem problemas. Pode ser. Claro.

Chegou o dia D. Ela escolheu um vestido vermelho incrível. Maquiou-se lentamente, botou um salto no pé, um sorriso na cara e comeu uma maça. Ele vestiu um terno italiano que estava guardado há anos, pois não tinha ocasião pra usar. Escovou bem os dentes e fez gargarejo, que era pra limpar dignamente as cordas vocais.

Combinaram que iam chegar as oito da noite no local. O karaoque foi escolhido a dedo, queriam um bem freqüentado. Ela resolveu que iria chegar mais cedo. Desejava tomar um Martini pra se animar. Ele saiu atrasado, não queria chegar antes dela.

Ela pediu um drinque. Não, foram dois. E quando ia pro terceiro achou que estava fazendo uma bobagem em cantar em público. Bateu um frio na barriga e foi beber o terceiro copo escondida no banheiro, para pensar no que fazer. Ele, na quarta sinaleira fechada, teve um súbito pensamento negativo. Que maldita idéia era aquela de soltar o gogó. Que bobagem. Que palhaçada.

Ela decidiu que não iria sair do banheiro até a noite acabar. Desligou o celular pra que ele não a contactasse. Depois inventaria uma desculpa. Ele deu meia volta e foi ao cinema. Há tempos queria ver um filme que ia sair de cartaz em breve. Lembrou de desligar o telefone, porque é claro que ela iria ligar perguntando por ele. Sentiram um pequeno remorso sim. “Coitado(a) dele(a).” Mas a certeza de que o Projeto Cigarras ia ser uma furada era muito maior.

Ele entrou no cinema e logo se pôs a soluçar. Era um musical. E ele percebeu que deveria estar cantando com ela. Ela permaneceu no banheiro por horas, até achar que ele já tinha ido embora. E, ao sair, avistou uma moça cantando a música que ele tinha escolhido especialmente pra ela. Então chorou, percebendo o grande equívoco que tinha feito. Mas nenhum dos dois teve coragem de telefonar. De falar a verdade, de pedir desculpas. Uma atitude tão simples, mas tão anormal no cotidiano deles. Ela sentia remorso toda vez que cantava no chuveiro. Já ele não conseguia mais criar coreografias novas. É... o Projeto Cigarras tinha definitivamente morrido. “Que pena”, ele pensava. “Uma pena”, dizia ela pra si mesma.

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