sexta-feira, junho 04, 2010

A escolha de Cícero

Clarice colocou a coleira no seu jabuti para irem passear. Era a primeira vez que fazia aquilo e encontrava-se atônita.

Penteou os cabelos e resolveu que era bom colocar um pouco de blush, pra ficar com um ar mais saudável. Sua prima Heloísa sempre lhe dizia que mulher muito pálida tinha cara de imagem de cemitério.

O jabuti não parecia intrigado, tampouco preocupado. Continuava debaixo da banqueta, piscando um só olho e pegando sol no casco.

Clarice tinha comprado, para a ocasião, uma coleira especial. Era xadrez, em variados tons de vermelho. Achava que combinaria com a tonalidade de Cícero. Ah sim, o jabuti chamava-se Cícero.

E lá foram eles. Clarice resolveu que desceriam pela escada e depois subiriam pelo elevador. Dessa forma o jabuti poderia usufruir e conhecer as duas formas de se locomover do apartamento até a rua. Parecia justo.

Cícero não demonstrava nenhuma excitação, mas também não parecia contra. Ele não reclamou para colocar a coleira e logo na primeira puxada, esticou o pescoço e colocou-se a andar. Caminhava devagar, é verdade, mas todos sabem que isso não significa que ele não quisesse ir ou que estava receoso, só demonstra que ele realmente é um jabuti.

Mas o fato é que na rua todos o contemplavam. Cícero era popular, não passava despercebido. Clarice achava que talvez tivesse escolhido uma coleira extravagante demais para o passeio. Alguns transeuntes olhavam enviesado ou riam as escondidas. Clarice não gostava disso, mas Cícero parecia não se importar.

Enquanto Clarice tomava um suco e o Jabuti sossegava um pouco [a essa altura a sua fisionomia tranqüila já demonstrava certo cansaço], uma menina de uns sete anos se aproximou. Os cabelos cacheados, olhos negros e vivos. Empacou perto deles e ficou olhando muito séria para os dois. Clarice percebeu e sorriu. A menininha então perguntou: - Porque você colocou sua tartaruga numa coleira? – Primeiro que Cícero não é uma tartaruga, é um jabuti. E coloquei a coleira pra ele não fugir durante o passeio, oras. A menininha parecia querer perguntar mais alguma coisa, franziu de leve o nariz, mas se calou.

Clarice, na volta pra casa, decidiu que levaria Cícero no colo uma parte do caminho. Não seria certo, logo no primeiro passeio da sua vida, fazer o bicho fatigar as pernas. E subiriam pelo elevador, como ela já havia previsto. Mas de repente, quando estavam na esquina de casa, Clarice parou subitamente. Olhou com tristeza para Cícero e entendeu que não poderia obrigá-lo a viver com ela. Isso deveria ser uma escolha dele. Sim, era isso que a menina de olhos negros e vivos queria lhe dizer! Que Clarice, embora entupida de tanto amor, não deveria andar com Cícero numa coleira, e sim, deixá-lo livre.

Era difícil tomar esta atitude. O apego, o amor, o hábito, as lembranças, tudo misturado, tornava complexo o ato de deixar o jabuti escolher que rumo tomar. Mas era o que deveria ser feito. Então, Clarice sentou-se na frente do edifício e deitou Cícero em seu colo. Afagou sua testa, porque sabia que esse era seu chamego preferido, e tirou a coleira xadrez que comprara com tanto carinho. O jabuti parecia não entender o momento crucial a que estava sendo exposto naquele momento.

Clarice com os olhos já úmidos adentrou no prédio e chamou o elevador. O coração apertou e antes de a porta se fechar, ela olhou pra trás. Cícero continuava na escada, estagnado, em silêncio, piscando de um olho só. Mas ele não olhou para trás. E isso significava alguma coisa.

2 comentários:

mARINA mONTEIRO disse...

nossa, amei!

Emerson Cardoso disse...

cada vez que venho aqui é uma linda surpresa... vc esta se superando em todos os sentidos... delicado e lindo! conheço tudo isso.. bjooo!